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Sustentabilidade: A relação de respeito e afeto entre os povos originários e a natureza

Nesta semana temos duas datas comemorativas muito interessantes. Dia 19 de Abril é conhecida nacionalmente como o Dia do Índio e 22 de Abril é o Dia Mundial da Mãe Terra.

Duas datas super importantes que estão conectadas pela relação de respeito e afeto entre os povos originários e a natureza.

Para relembrarmos dessa relação que acabamos nos afastando com a modernidade, convidamos Tamara Nanni, do LIS (Laboratório de Inovação Social) Facens e também integrante do Comitê de Sustentabilidade da Facens, para nos ajudar nessa missão.

Com o apoio de Guilherme Proença, estagiário no LIS Facens, Tamara realizou uma entrevista com Hamangaí Pataxó Pataxó Hã-Hã-Hãe, indígena que vem inspirando jovens do Brasil todo com sua luta pelos direitos indígenas e da Natureza.

Imagem: Hamangaí Pataxó Pataxó Hã-Hã-Hãe, indígena que vem inspirando jovens do Brasil

A seguir, você confere essa entrevista e uma reflexão muito importante sobre essas duas datas que marcam o mês de abril como o mês em que celebramos a Terra, nossas origens e a relação com o ambiente que vivemos.

Mas, antes que você comece a ler essa entrevista cheia de insights interessantes, vamos de deixar aqui um breve aprendizado que a Tamara teve enquanto se preparava para a entrevista:

Dia do Índio é considerado um dia “folclórico que reproduz alguns preconceitos”, nas palavras do indígena e doutor em educação Daniel Munduruku.

Com a intenção de não reproduzir preconceitos nesse post aqui no Blog Facens, deixo o link da entrevista para que vocês possam refletir um pouco mais sobre essa data.

Agora, bora conhecer a Hamangaí e o que ela tem a contar para o mundo sobre suas vivências e aprendizados!

Conhecendo Hamangaí

Tamara: Hamangaí, conta para gente um pouco sobre quem você é e as principais experiências que te tornaram a pessoa que você é hoje?

Hamangaí: Eu sou Hamangaí filha de dois povos. Meu pai é Pataxó Hã-Hã-Hãe daqui do Sul da Bahia da aldeia Caramuru Catarina Paraguaçu sou do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe. etinia Kariri Sapuyá. Minha mãe é Terena lá do Mato Grosso do Sul.

Eles se conheceram em Brasília. Minha mãe acabou vindo para Bahia com meu pai.

Eu nasci na Cidade de Pau Brasil que é o município mais próximo da nossa aldeia. Cresci numa parte da nossa comunidade que chama Caramuru, que é a aldeia mãe da comunidade. Por conta da dificuldade de acesso a água potável, acabamos migrando internamente dentro da minha comunidade para um outro local que se chamava Água Vermelha.

Imagem: Hamangaí Pataxó Pataxó Hã-Hã-Hãe e primos

Só para contextualizar, minha jornada pessoal sempre foi acompanhada pela questão da água.

Na minha juventude, eu sempre fui uma pessoa muito ativa nas questões internas da comunidade. Eu sempre acompanhei as Assembleias Gerais, participando de construções importantes dentro da nossa comunidade. Por exemplo a construção do nosso Regimento Interno do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, participação nas reuniões internas para pensar na educação e saúde da juventude. Sempre procurei esses lugares como forma de aprender.

Eu vi muitas as nossas diferenças dentro da nossa própria comunidade.

Um marco importante na minha história foi meu processo de despertar, quando participei do Acampamento Terra Livre (ATL) em 2015. O acampamento reúne de 4 a 5 mil indígenas, que ficam na frente da Esplanada dos Ministérios. Lá, a gente discute as articulações indígenas nacionais, o que acaba por se tornar uma grande escola de lideranças indígenas. A gente escuta pessoas como Sonia Guajajara e o cacique Rauni, entre outras referências de outros povos.

O que passamos nesse acampamento foi uma grande aula. Sofremos o racismo estrutural quando os espaços que deveriam estar abertos para nos ouvir e entender nossas demandas, não nos atenderam. Também fomos atacados com repressão durante uma passeata pacifica. No meio do caos da repressão, eu comecei a chorar de ver aquela barbaridade. A gente estava ali em um ato pacífico pra dizer um pouco da nossa realidade, mas não estavam nos ouvindo.

Naquele dia, eu refleti: o que eu estou fazendo para fortalecer essa luta? Meu povo está morrendo, as nossas lideranças estão morrendo. A gente chega nesses espaços e somos atacados.

O que eu posso fazer daqui em diante? Eu não posso fingir que nada aconteceu, não posso voltar para a minha comunidade e fingir que nada está acontecendo porque o problema é muito maior.

Em 2016, tive outra experiência com jovens indígenas de outros povos daqui do Nordeste, e nesse momento eu vi que eu era muito tímida. Eu fui entender a timidez não poderia me silenciar na luta, não poderia me parar.

Quando eu cheguei na universidade passei por outro processo de luta. Pela minha permanência, pela manutenção da minha identidade.

Eu sou um povo.

Eu estou aqui fisicamente por meio de um indivíduo, com a mente uma pessoa. Na visão dos povos indígenas, quando a gente ocupa outros espaços, não é só eu que estou lá, é também toda a comunidade, todo território. Eu sou extensão do meu território, da minha comunidade.

Celebrando a Mãe Terra

Tamara: Logo mais teremos o 22 abril celebraremos o Dia Internacional da Mãe Terra. Como é sua relação com a Mãe Terra e com os elementos que a compõe?

Hamangaí: Toda a relação com a Mãe Terra passa pela nossa espiritualidade. Se a gente está vivo hoje é devido a essa força Sagrada que nos fortalece todos os dias. Para mim território é a terra, é meu lar é minha cura, é onde eu me sinto livre. É onde todo mundo se conhece, todo mundo puxa a orelha de todo mundo. A gente tem várias irmãs, vários primos, mães, avós. Quando alguém está errado, o outro vai chama no cantinho e orienta.

A terra é um símbolo muito importante. É da onde a gente tira nossa comida, onde a gente pisa para fazer nossos rituais e onde moram nossos encantados. Não é lugar de lucrar.

Na cidade a gente não tem esse contato direto com esses elementos, nem com a terra, nem com a natureza. Quando eu estou na mata eu me sinto livre, quando eu estou no rio eu me sinto curada. As vezes no final do semestre da faculdade, quando bate aquela angústia e ansiedade eu coloco um cântico da minha aldeia para me acalmar.

Tamara: Como foi tecida essa relação? Quais são as memórias?

Hamangaí: Onde eu cresci sempre que a gente adoecia, minha avó rezava e benzia a gente. Ela nos falava “minha filha pega ali o raminho”. Ela me orientava certinho o jeito que era para tirar o ramo da planta, tínhamos que pedir licença, saber a posição correta para tirar, a qualidade de folha se é mais verdinha se é mais escura.

Então, eu cresci com esse trabalho da minha avó Egida desse processo de cura. Ela era uma grande referência para o povo Pataxó, uma grande benzedeira. Eu cresci escutando suas histórias e vendo sua ligação muito forte com a espiritualidade. A fé dela nas plantas medicinais, as luas e os horários de banho, o respeito pelos nossos ancestrais.

Eu tenho uma ligação muito afetiva com a água. Quando a gente era criança, a gente tinha uma brincadeira de beira de rio. A gente falava que quem comece uma piabinha viva, um peixe pequenininho, a gente aprenderia a nadar. Então a gente ficava se desafiando. Eu nunca tive coragem de comer, por isso eu nunca aprendi a nadar.

No rio Água Vermelha tinha uma sementinha que cai na beira do rio e ela dentro da água ela fica um azul lindo, muito brilhoso. Quando eu vi pela primeira vez a sementinha eu pensei que era uma pedra preciosa e eu fiquei mega feliz. Eu comecei a catar todas. Só depois eu descobri que não era pedra não, era semente. São coisas assim que a gente vai aprendendo por mais que seja coisa simples isso reflete muito na nossa vida adulta, no agora.

Eu adorava pegar joaninhas, fazer panelinhas de barro. A gente brincava com essas coisas simples, com os elementos da natureza. Tudo isso com certeza eu vou ensinar para minhas futuras gerações, as minhas filhas, meus filhos. Enfim, esse é o desejo de nunca perder a nossa essência indígena e a nossa essência que tá conectada com as infâncias.

Mudanças climáticas e o futuro

Tamara: Esse dia também é um dia de conscientização sobre os problemas ambientais que enfrentamos (poluição do ar, microplásticos, perda intensa da biodiversidade e mudanças climáticas são alguns exemplos). Você já teve que conviver com alguns desses problemas?

Hamangaí: Como eu disse antes, na antiga aldeia que eu morava, a gente tinha dificuldade de acesso a água potável. Depois que nos mudamos para Água Vermelha, achei que não passaríamos mais por esse problema, tinha um rio que passava atrás de nossa casa. Em 2015, pela primeira vez o rio secou completamente, ele ficou terra pura.

A gente tem toda essa memória afetiva com o rio. Então ver o rio naquela situação foi muito doloroso para mim. Aí que eu fui me despertando para a questão das mudanças climáticas.

Aquilo ali pra mim foi um choque novamente e me fez pensar, por que isso está acontecendo? E o que eu posso, preciso fazer pra tentar reverter essa situação para que não aconteça isso novamente?

Quando a gente escuta sobre mudanças climáticas, a gente acha que vai acontecer no futuro, com as futuras gerações. Mas não, já está acontecendo.

Tamara: Na Facens a gente sempre retorna ao conceito de Desenvolvimento Sustentável: Garantir as necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das futuras gerações a garantirem sua própria necessidade. Para você tem uma forma mais interessante de pensar sobre sustentabilidade?

Hamangaí: Sustentabilidade pra mim seria o bem viver. Sustentabilidade é só um termo, um nome. E bem-viver é território, ancestralidade, espiritualidade, é entender o território como filho da mãe natureza.

É extremamente importante esses assuntos sejam trabalhados na faculdade, porque de uma maneira geral, os estudantes da área de exatas tem um pouco de distanciamento com questões socioambientais. E são justamente essas pessoas, esses profissionais da área de exatas de engenharia que são muito cobiçados pelos grandes empreendimentos, pelos projetos que impactam diretamente o nosso território.

Então são os profissionais dessas áreas, que não tem muita proximidade tanto da causa indígena quanto das questões socioambientais, que são instruídos a fazer um trabalho, sem refletir se esse trabalho respeita a vida.

Esses profissionais cobiçados podem acabar caindo em um caminho não tão legal. As vezes o caminho da corrupção, onde você para o dá um determinado licenciamento que acaba impactando várias vidas e vários territórios.

Então sustentabilidade para mim de uma forma reduzida seria isso Bem Viver.

A cultura indígena e os guardiões da Terra

Tamara: No final do mês de março, a ONU lançou um relatório comprovando que indígenas são os melhores guardiões das florestas e pede apoio internacional para protegê-los. Na sua opinião, por que os povos originários desempenham esse papel tão bem? Como podemos atuar para proteger a cultura indígena?

Hamangaí: Porque nós indígenas entendemos que sem proteger a floresta não teremos vida. Sem floresta nós não temos ar puro, não temos alimento, não temos animais, não tem nosso rio, não temos adereços. Não tem morada para nossos encantados.

Sem floresta não tem lugar para nossas crianças brincar e aprender através da oralidade.

Então é de entender que sem a terra, nosso território não tem alimento e nem água limpa para beber e para curar.

Isso que é ensinado de forma natural, através de histórias contadas na roda de conversa na beira da fogueira e através da educação escolar indígena que está muito interligada com a natureza e todos esses elementos que nos cercam no nosso dia a dia. Essa é a luta pelo Bem Viver.

Por isso reafirmo a importância da demarcação de todas as terras indígenas no Brasil, como trabalho de proteção das florestas e dos povos originários. A demarcação de terras é uma ação emergencial, pois sabemos que mesmo depois de demarcada ainda há conflito. Mas a demarcação é importante para garantir os direitos originários e também os direitos constitucionais.

Tamara: Como os não indígenas podem apoiar?

Hamangaí: Eu acho que é muito nesse sentido de se juntar aos povos indígenas e se juntar essas comunidades tradicionais para fortalecer a luta. Utilizar da sua posição, de onde você tá agora, como estratégia para fortalecer essa luta socioambiental.

É extremamente importante defender a vida. Não pode ser só tarefa dos povos indígenas defender a natureza, não pode ser só uma luta dos povos indígenas de comunidade tradicional porque as mudanças climáticas estão aí para todos.

Está afetando todas as pessoas, independente se você tá na aldeia ou se você está na capital, se você tá na periferia. É claro que ela atinge algumas pessoas de maneira mais violenta e direta.

Tem muita gente na linha de frente que estão dando a própria vida para defender o bem coletivo. Precisamos entender que estamos morando na mesma casa e que precisamos todos trabalhar para garantir os direitos das futuras gerações.

É você usar dos seus espaços para fortalecer essa luta e mobilizar. Mobilizar as pessoas na faculdade, na escola, no seu coletivo, na sua organização. Trazer essas pessoas de comunidades.

Conversar com as pessoas que são diretamente afetadas por todas essas questões. Unificar essas forças da sociedade e entender que é uma causa de todos nós. E você ter a consciência do seu papel, da sua responsabilidade e você cobrar das pessoas que precisam fazer, precisa estar se posicionando, ter esse comprometimento e cobrar dessas pessoas que estão no poder de forma estratégica.

Tamara: Pra finalizar, o que você gostaria de dizer para esses profissionais que está se formando agora?

Hamangaí: Que não se acomode dentro do seu curso, dentro da sua profissão. Que entenda sua responsabilidade individual e o seu papel profissional.

Gostaria que o aluno se aproximasse da realidade dos povos indígenas para entender que muito do que é aprendido é reproduzido sem conhecer a realidade das pessoas que são diretamente afetadas. Ele poderia aprender mais sobre nosso dia a dia, e assim se aproximar da causa indígena. Aprender mais com a experiência dos anciãos e com as tecnologias ancestrais.

Poderia pensar em como aplicar o conhecimento que ele está recebendo no curso para ajudar em alguma aldeia próxima, sempre respeitando os processos internos dessa própria comunidade. Sem imposição de conhecimento.

Será que o que você está produzindo e pesquisando na universidade se aproxima da realidade local da comunidade?

Pediria que os alunos não se deixassem se corromper. Porque defender a vida é uma tarefa de todos nós.

Tem médico, tem veterinário que defende a vida, mas essa defesa não é restrita a essa área do conhecimento. Defender a vida é para um engenheiro que abraça a causa indígena, que compreende seu papel como cidadão brasileiro, que tem sua consciência expandida de entender o que é a terra, o território com sua simbologia para os povos indígenas.

Fazer parte de um movimento, envolvendo futuros profissionais que se misturam com pessoas de outras áreas para aprender e gerar impacto. Não ficar preso dentro da caixinha do nosso curso. Estar aberto para criar conhecimento e não ficar restrito ao muro da universidade.

E aí, curtiu a entrevista? Nós amamos e só temos a agradecer a Hamangaí Pataxó Pataxó Hã-Hã-Hãe por compartilhar tanto com a gente!

Uma comemoração global!

Se você quer saber mais sobre a causa e tem vontade de participar de fóruns de discussão, palestras e webinars, se liga: há um movimento global de comemoração dessa data que reúne eventos que ocorrerão no mundo todo!

No site earthday.org é possível ter acesso a esses eventos de acordo com a sua região. Alguns são do Brasil e a maioria online é gratuito!

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Jornalista responsável:
Elis Marina de Amaral Gurgel Nunes (MTB 0094600/SP)

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